O meu artigo "O Porquê dos nossos
Sentimentos", representou uma sugestão sobre o papel dos sentimentos e
emoções na Teoria da Evolução de Darwin. É um texto de Neurociência onde eu
sugiro a razão pelo qual sentimentos e emoções existem em nossos cérebros.
Dúvidas surgiram em vários leitores e por
isto senti a necessidade de desenvolver um pouco o assunto. Para começar, temos
que entender que existe uma ordem aparente na evolução animal, uma escala
crescente em complexidade nos seres vivos do nosso planeta. De seres
unicelulares povoando diversos habitats terrestres, até nós humanos, passamos
pelos insetos, répteis, peixes, aves e todos os mamíferos, estes últimos menos
complexos que nós. A diferença entre nós e os outros mamíferos se refere àquilo
que é o sistema mais complexo conhecido: o nosso cérebro. Em termos somáticos,
e até certo ponto no sistema nervoso, somos muito parecidos com eles, do ponto
de vista da morfologia, da genética e da bioquímica. É importante lembrar que
esta escala não representa necessariamente uma ordem crescente em complexidade
na história evolutiva de cada grupo em relação aos outros. Por exemplo, uma ave
é mais complexa que um inseto, mas este pode ser mais novo como espécie. Pode
até ocorrer uma diminuição da complexidade ao longo da evolução de uma espécie.
O neurofisiologista Rodolfo Llinás, em seu notável livro "I of the
Vortex", relata a existência de um invertebrado marítimo que, ao passar da
forma larval, que se move livremente na água, para uma forma afixada permanente,
como uma ostra, digere o seu próprio cérebro, provavelmente por não precisar
mais de tanta complexidade.
Atualmente é aceito sem dúvidas que a
origem das espécies novas está baseada no fato de que os seres evoluem, ou
seja, se modificam, se adaptam à mudanças no ambiente etc. Assim, o chamado
"modelo padrão" da biologia se consolidou através do casamento entre
as descobertas da biologia molecular, da genética e da teoria da evolução. Pode
ser argumentado, portanto, que isso se aplica a todos os aspectos da nossa
biologia, inclusive as bases para os nossos mais complexos comportamentos e
emoções.
A evolução biológica se manifesta através
de mudanças permanentes (codificadas geneticamente) na forma e função das
células, tecidos e órgãos dos seres vivos, Entretanto, o que interessa para nós
aqui, é que desde os tempos de Darwin, mas especialmente como resultado do
trabalho pioneiro de etólogos com animais na década de 30, tais como Konrad
Lorenz, se sabe que o comportamento dos animais também está sujeito a pressões
seletivas e adaptativas. O comportamento "surgiu" na Terra há muito
tempo. Por exemplo, um ser unicelular, como uma ameba reage se afastando de um
estímulo negativo ou se aproximando de um estímulo positivo para sobreviver.
Comportamentos simples, como tropismos deste tipo, existem provavelmente há
centenas de milhões de anos, e podem ser encontrados até mesmo em organismos
que não têm sistemas nervosos, como plantas. Entretanto, a seleção natural
pressionou pelo surgimento de comportamentos cada vez mais complexos e
avançados, levando à evolução dos órgãos sensoriais, músculos e redes neurais
especializadas. Para o comportamento aplica-se a mesma coisa que para outros
traços dos organismos: quanto maior for a gama de comportamentos exibidos por
um determinado organismo reagir, sobreviver, maior será a sua chance de se
adaptar adequadamente ao ambiente mutante. Diversidade é a palavra-chave aqui.
Muitos autores sugerem, portanto, que a complexidade cerebral é essencialmente
relacionada à complexidade das estratégias comportamentais desenvolvidas para a
sobrevivência da espécie e os rigores da competição. Por isso não é difícil de
imaginar que, como os organismos precisam adquirir e processar uma maior
quantidade de informações a respeito do meio ambiente, isso exige um sistema
nervoso mais complexo.
Eventualmente (e esse era um dos maiores
medos de Darwin, como humanista e religioso), todas as características do
cérebro humano, mesmo aquelas consideradas "superiores" e complexas,
como linguagem, pensamento, lógica, sentimentos etc., podem ser inteiramente
explicadas pelos efeitos da seleção natural na evolução. Alguns autores, como
Richard Dawkins, chegam ao extremo se sugerir que a característica essencial de
todas as formas vivas é simplesmente preservar a sobrevivência dos genes (veja
o seu livro "O Gene Egoísta").
No meu primeiro artigo citei o exemplo da
"força de ligação" que aparece entre pais e filhos, através de
sentimentos como o afeto, o amor etc., sem os quais ninguém sobreviveria neste
planeta logo após o nascimento. Entretanto, em muitas situações, o instinto de
proteger os filhotes entra em conflito com os instintos de sobrevivência.
Primeiro, um genitor precisa, entre outras coisas, saber quem são seus filhos,
saber o que fazer para protegê-los e a si próprios. Neste ponto o cérebro, com o
lado racional, é importante quanto o lado emocional. Além disso: reações como a
agressividade contra predadores e comportamentos e sentimentos de defesa em
relação ao bem estar do grupo social como um todo, podem tomar uma precedência
em relação aos próprios cuidados com a prole, devido à necessidade de perpetuar
a espécie. Podemos observar isto em primatas não humanos, tais como chimpanzés,
em que o infanticídio é muito comum e é relacionado às bases instintivas desses
tipos de defesas.
Isso não acontece com os seres humanos,
entretanto. Devido à evolução cultural, a base emocional e instintiva pode ser
inteiramente modificada através da razão. Por exemplo, uma mãe pode preferir
sacrificar a própria vida para salvar a do seu bebê. Ou a sobrevivência do
grupo social pode ser ameaçada com base em razões puramente racionais (como na
guerra). "Saber" é racional; "sentir" é emocional e aí
estão os dois pilares cerebrais de que falei no primeiro artigo: somos seres
racionais e emocionais e não só racionais. Essas duas esferas estão unificadas
e não podem ser separadas, como foi explicado de forma muito bonita pelo
neurologista António Damásio, em seu livro "O Erro de Descartes".
Citando a falta completa de emoções em personalidades sociopatas e as
alterações de personalidade em pacientes lesados em certas áreas frontais do
cérebro, tal como no caso histórico de Phineas Gage, Damásio explica que o erro
de René Descartes foi supor que há uma separação entre o racional e o
irracional (emoções, sentimentos) e que ser supremamente racional seria a
melhor coisa para a humanidade. Não é verdade: sem emoção, a racionalidade
perde um componente importante e se torna patológica!
Em conclusão, podemos dizer que a natureza
encontrou um caminho para resolver o problema dos seres vivos que possuem uma
prole dependente dos pais durante o período de amadurecimento. As estratégias
comportamentais que surgiram após milhões de anos da evolução dos hominídeos e
de seleção sexual envolvem uma complexa mistura de razão e emoções. Esta
provavelmente é base da nossa singularidade entre todas as espécies.
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